A renda líquida obtida em 2012 pelas 100 pessoas mais ricas do mundo, 240 bilhões de dólares, poderia acabar quatro vezes com a extrema pobreza no planeta. A conclusão está num relatório publicado no fim de semana pela ONG britânica Oxfam. A entidade não entra em detalhes a respeito das contas que fez para chegar ao dado, mas os números servem como alerta para a intensa e crescente desigualdade social no mundo. O documento serve para chamar a atenção para os debates do Fórum Econômico Mundial, que começa nesta terça-feira 22 em Davos, na Suíça. A desigualdade ganhou um painel próprio no encontro, marcado para sexta-feira 25, mas tanto suas conclusões quanto os avisos da Oxfam devem cair em ouvidos moucos. O mundo hoje está construído para ampliar a desigualdade e não há sinais de mudança.
O
relatório da Oxfam ecoa estudos e análises econômicas recentes sobre a
desigualdade. Hoje, as diferenças entre os países estão diminuindo, mas a
desigualdade entre os mais ricos e os mais pobres dentro de cada nação está crescendo.
Essa é a regra na maior parte das nações em desenvolvimento e também nas
desenvolvidas.
Nos
Estados Unidos, a desigualdade social é tão grande hoje em dia que, nas
palavras da revista The
Economist, supera a das últimas décadas do século XIX, a chamada
“Era Dourada” do capitalismo norte-americano. A porcentagem da renda nacional
que vai para o 1% mais rico da população dobrou desde 1980, de 10% para 20%.
Para o 0,01% mais rico, a bonança foi maior: sua renda quadruplicou.
Na
União Europeia, a situação também é ruim. No livro Inequality and Instability (Desigualdade e
Instabilidade, em tradução livre), o economista James Galbraith mostrou que, se
tomada como um conjunto, a UE supera os Estados Unidos em desigualdade. Isso se
explica, em parte, pelas diferenças entre os diversos países do bloco. Ainda
assim, se tomadas separadamente, as nações europeias também têm observado
aumento da desigualdade. Um estudo sobre o tema publicado em 2012 pela OCDE,
concluiu que “desde a metade dos anos 1980″, os 10% mais ricos de cada país
“capturam uma crescente parte da renda gerada pela economia, enquanto os 10%
mais pobres estão perdendo terreno”. No Japão, onde 100 milhões de pessoas se
diziam de classe média, estudos mostram, desde o fim da década de 1990, o aumento
da desigualdade a partir da metade dos anos 1980.
A política sequestrada
Não
é uma coincidência o aumento da desigualdade no mundo desenvolvido desde os
anos 1980. Foi nesta época que começaram a ter efeito as políticas lideradas
pelos governos de Ronald Reagan nos Estados Unidos (1981-1989) e Margaret
Thatcher (1979-1990) no Reino Unido, mas adotadas em boa parte do mundo por
outros governantes, como Helmut Kohl (Alemanha), Ruud Lubbers (Holanda) e Bob
Hawke (Austrália): impostos mais baixos, desregulamentação do sistema
financeiro, redução do papel do governo e outras medidas integrantes do
receituário neoliberal. Essa política, arrimo da globalização, teve alguns
efeitos positivos, mas foi levada a extremos por quem se beneficia delas. Para
manter as políticas desejadas, que aumentavam sua riqueza (e também a
desigualdade) esses grupos de interesse se encrustaram nos círculos de poder.
Eles sequestraram a política.
Este
fenômeno é analisado no livro Winner-Take-All
Politics (Política do vencedor leva tudo, em tradução livre), dos
professores Jacob S. Hacker, de Yale, e Paul Pierson, da Universidade da
Califórnia. Em artigo de capa da revista Foreign
Affairs em dezembro de 2011, o jornalista George Packer resume o
argumento do livro em duas palavras: dinheiro organizado. Foi no fim dos anos
1970 e início dos anos 1980 que as grandes corporações de diversos setores da
economia passaram a financiar as campanhas eleitorais, dando início a uma
“maciça transferência de riqueza para os americanos mais ricos”.
Este
modelo de política, e de fazer política, grassou no mundo desenvolvido e foi
transplantado para os países em desenvolvimento, onde foi emulado com maestria
pelas elites econômicas locais. Não é uma surpresa, então, que a desigualdade
esteja aumentando também nesta região. A Índia acumula diversos bilionários,
mas continua sendo o país com mais pobres no mundo. A África do Sul é mais
desigual hoje do que era no fim do regime segregacionista do Apartheid. Na
China, onde não é preciso sequestrar a política, apenas pertencer ou ter um bom
relacionamento com o Partido Comunista, a desigualdade é semelhante à
sul-africana: os 10% mais ricos ficam com 60% da renda.
A América Latina e o caso do Brasil
O
único lugar do mundo onde a desigualdade está caindo de forma sistemática é a
América Latina, justamente a região mais desigual do mundo. Isso ocorreu nos
últimos anos por dois motivos. O modelo neoliberal, e a ascensão do “dinheiro
organizado”, também chegaram aos países latino-americanos, mas em alguma medida
entraram em choque com forças políticas contrárias a uma parte importante do
receituário, a não-intervenção do Estado na economia. Assim, os governos da
região, entre eles o de Luiz Inácio Lula da Silva no Brasil, conseguiram
estabelecer a redução da desigualdade social como uma prioridade. Em segundo
lugar, os países da região, também incluindo o Brasil, foram muito beneficiados
pelo rápido crescimento econômico provocado pela existência de um mundo faminto
por commodities.
Há,
entretanto, inúmeras dúvidas a respeito da sustentabilidade do modelo
latino-americano de redução da desigualdade, especialmente quando a economia
começar a desacelerar, situação em que o Brasil já se encontra. Como notou o
colunista Vladimir Safatle em edição de dezembro de CartaCapital, o capitalismo de Estado do
governo Lula promoveu um processo de oligopolização e cartelização da economia,
o que favorece a concentração de renda nas mãos de pequenos grupos. Ao mesmo
tempo, Lula não fez, e Dilma Rousseff não dá indícios de que promoverá, a
universalização e qualificação dos sistemas públicos de educação de saúde. Sem
essas reformas, a classe média seguirá gastando metade de sua renda com esses
dois serviços básicos e os pobres continuarão com acesso a escolas e hospitais
precários. Os ricos, por sua vez, não terão problemas. A desigualdade de renda
poderá cair ainda mais, mas a desigualdade de oportunidades vai perseverar, e a
imensa maioria dos pobres continuará pobre.
Para
fazer essas reformas, e outras potencialmente capazes de reduzir a
desigualdade, como a taxação de grandes fortunas e de heranças e reformas
estruturais, o Brasil e outros países latino-americanos enfrentarão as mesmas
questões do mundo desenvolvido. Em grande medida, a política latina foi
sequestrada pelo “dinheiro organizado”. Levantamento do repórter Piero
Locatelli mostra que, em 2010, 47,8% das doações eleitorais no Brasil foram
feitas por empresas e que apenas 1% dos doadores foram responsáveis por 73,6%
do financiamento da campanha.
O
resultado disso, seja nos Estados Unidos, na Europa, na Índia ou no Brasil, é
uma grave crise de representação. O cidadão não consegue participar da vida
pública e ter seus anseios ouvidos pelo governantes. Os partidos, à esquerda e
à direita, caminham cada vez mais para o centro e, como diz o filósofo esloveno
Slavoj Zizek, fica cada vez mais difícil diferenciá-los. A esquerda,
supostamente contrária aos absurdos do liberalismo econômico, ou aderiu a ele e
também tem suas campanhas financiadas por grandes corporações ou não tem um
modelo alternativo e crível a apresentar.
Em
seu relatório, a Oxfam pede aos governos para tomar medidas que, ao menos,
reduzam os níveis atuais de desigualdade social aos de 1990. É bastante
improvável que os política e economicamente poderosos resolvam fazer isso do
dia para a noite. Estão aí os brasileiros que chamam o Bolsa Família de
bolsa-esmola e o ator francês Gerard Depardieu, que preferiu dar apoio a um
ditador a correr o risco de pagar impostos de 75%, para provar isso. Talvez
apenas o entendimento de que, como diz a ONG britânica, a desigualdade social é
economicamente ineficiente, politicamente corrosiva e socialmente divisiva,
provoque mudanças. Para isso, no entanto, é preciso que os poderosos entendam
os riscos da desigualdade.
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